KARDEC E INTEGRIDADE
Nada é mais sagrado do que a
integridade de nosso próprio espírito.
Ralph Waldo Emerson
Integridade
é qualidade do que é íntegro; de uma probidade absoluta; honesto,
incorruptível, imparcial.
O
homem íntegro não está dividido em si mesmo, e não há nele nenhuma distância
entre o pensar, o sentir e o agir, porque ele é uno. O homem íntegro não
disputa, pois a sua parte mais importante, que é o espírito, comanda as paixões
e as submete à razão e ao bom senso; ele não se agasta com as provocações que
lhe chegam do exterior, por que é guiado pela própria consciência, sempre reta.
A
mansuetude que caracteriza o viver de um homem íntegro, é poderosa força de
atração, de convencimento. Foi a integridade de Allan Kardec que fez
acreditadas as suas obras.
Para
ressaltar o caráter daquele que legou ao mundo a Ciência Espírita, e para que
aqueles que admiram suas obras possam também conhecer o caráter do homem, nós
transcrevemos aqui uma nota de alguém que frequentou seu lar, esteve a
observá-lo de muito perto, e que hoje nos possibilita conhecer um pouco mais o
ser humano que foi Allan Kardec.
Eis o
que diz o Dr. Grand, antigo vice-cônsul da França, em uma nota sobre o Livro
dos Espíritos, em sua brochura intitulada: Carta de um Católico sobre o
Espiritismo: [1]
“Lendo
esta obra sente-se que o autor fala, não apenas como homem convicto, mas como
homem de experiência que a tudo observou com uma perfeita independência de
ideias. Tudo ali é discutido friamente, sem exageração. Todas as consequências
ali são deduzidas de argumentos tão justos que se poderia dizer que a filosofia
ali é tratada matematicamente. Quando mais tarde tive a ocasião de ver o Sr.
Allan Kardec, e de ler seus outros escritos, reconheci que estava ali o fundo
de seu caráter e o próprio de seu espírito. É um homem essencialmente positivo,
que não se emociona com nada, e discute os fenômenos mais extraordinários com
tanto sangue frio como se se tratasse de uma experiência comum. ‘Para se
apreciar de maneira correta as coisas, disse ele, é preciso observar sem
entusiasmo, pois o entusiasmo é fonte da ilusão e de muitos erros.’ Ele
discorre sobre as coisas do outro mundo como se as tivesse sob os olhos, e no
entanto ele não fala delas como inspirado, mas como daquilo que existe de mais
natural no mundo. Ele no-las torna, por assim dizer, palpáveis, pois possui,
sobretudo, a arte de fazer compreender as coisas mais abstratas; é, pelo menos,
a impressão que senti ao ouvi-lo falar, e que muitas outras pessoas, como eu,
também sentiram. O caráter dominante de seus escritos é a claridade e o método;
se a isto ajuntarmos um estilo que permite lê-los sem fadiga, ao contrário da
maioria das obras de filosofia, que exigem penosos esforços para serem
compreendidas, não se ficaria admirado pela influência que seu estilo exerceu
sobre a propagação da Doutrina Espírita.
A
esta explicação, que em poucas palavras julguei importante dar, acrescentarei
uma simples observação sobre uma das causas que, na minha opinião, contribuíram
poderosamente para dar o crédito de que gozam as obras do Sr. Allan Kardec: é a
ausência de todo sentimento de aspereza para com seus adversários. Um homem não
se coloca em evidência, como ele o fez, sem suscitar muitos ciúmes, muita
animosidade; entretanto, em nenhuma parte se encontra o mínimo traço de rancor
ou de malevolência, a mínima recriminação endereçada àqueles dos quais ele
poderia se queixar. Desde a minha iniciação no Espiritismo tenho frequentemente
tido a ocasião de vê-lo na intimidade, e posso dizer que jamais o vi se
preocupar com seus detratores; é como se eles não existissem. Ora, confesso que
o caráter do homem não contribuiu pouco para corroborar a opinião que eu tinha
concebido em favor da Doutrina, quando li seus escritos. É evidente que se eu
tivesse reconhecido nele um homem ambicioso, intrigante, ciumento e vingativo,
teria dito que ele mentia aos princípios que professa, e desde então minha
confiança na verdade dessa Doutrina teria sido abalada.
Essas
reflexões, em forma de parênteses, me pareceram úteis para motivar uma das
causas que mais fortemente me levaram a prosseguir, com comprometimento, meus
estudos espíritas.
Uma
outra circunstância, não menos preponderante, vem se juntar às demais e me
explicar, ao mesmo tempo, a profunda indiferença do autor para com as diatribes
de seus antagonistas. Eu estava um dia na casa dele no momento em que ele
recebia sua correspondência, muito numerosa como de hábito. Encontrava-se ali
um jornal em que notadamente o Espiritismo e ele próprio eram amplamente
escarnecidos. Havia também muitas cartas que ele leu igualmente para mim,
dizendo: ‘Ireis agora ver a contrapartida, e podereis julgar o que é o
Espiritismo.’ Entre as cartas, algumas eram pedidos de conselhos sobre os atos
mais íntimos e frequentemente os mais delicados da vida privada. A maioria
continha a expressão de indizível felicidade, do reconhecimento mais tocante
pelas consolações que se havia encontrado na Doutrina; pela calma que ela havia
proporcionado; pela força que ela havia dado nas circunstâncias mais
afligentes; pelas boas resoluções que havia feito tomar. ‘O que vedes aqui, me
disse ele, se renova quase diariamente. Os autores dessas cartas me são, na sua
maioria, desconhecidos, mas eis aqui um, e eu conheço muitos que estão na mesma
situação, que sem o Espiritismo se teriam suicidado.
Acreditais
que a satisfação de ter arrancado homens ao desespero, ter trazido a paz a uma
família, feito pessoas felizes, não me compensa largamente por algumas pequenas
e tolas críticas da parte de pessoas que falam de uma coisa sem a conhecer?
Acreditais que uma só dessas cartas não compensam, de sobra, algumas maldades
das quais fui alvo? Aliás, teria eu tempo de me ocupar com aqueles que zombam?
Eu prefiro, bem mais, dar meu tempo àqueles a quem eu posso ser util. Não tenho
somente para mim a consciência de minhas boas intenções; Deus, em sua bondade,
reservou-me um gozo bem maior, que é o de ser testemunha do bem que a Doutrina
Espírita produz; e eu julgo, pelo que vejo, sobre a influência que ela exercerá
quando estiver generalizada. Não se trata de uma utopia, pois ela é
essencialmente moralizadora; vede por vós mesmo a reforma que ela opera sobre
os indivíduos isolados; o que ela faz sobre alguns, o fará sobre cem, sobre
mil, sobre um milhão, pouco a pouco, compreende-se.
Ora,
supondes uma sociedade penetrada dos sentimentos do dever que vedes expressos
nessas cartas; credes que ela não extraísse daí elementos de ordem e de
segurança? As cartas que vindes de ouvir são todas de pessoas esclarecidas, mas
vede esta: é de um simples operário, outrora imbuído das ideias sociais mais
subversivas. Ele figurou, de maneira lamentável, em nossas lutas civis, e havia
dedicado um ódio implacável aos que ele acreditava serem favorecidos às suas
expensas, e sonhava coisas impossíveis. Agora, que diferença de linguagem! Hoje
ele compreende que a passagem pela Terra é uma prova e, buscando um bem-estar
muito natural, não pede nada às expensas da justiça. Ele não inveja a
felicidade aparente do rico, porque sabe que há uma justiça divina, e que essa
felicidade, se ele não a mereceu aqui na Terra, terá terríveis reveses numa
outra vida. E por que pensa ele assim? Porque lhe dissemos? Não, mas porque ele
adquiriu, pelo Espiritismo, a certeza dessa vida futura na qual não acreditava,
e que pôde convencer-se por si mesmo, pela situação daqueles que nela se
encontram, e porque seu pai, que o entretinha nessas ilusões veio, ele mesmo,
lhe dar conselhos plenos de sabedoria. Ele blasfemava contra Deus, que achava
injusto por haver favorecido algumas de suas criaturas; hoje ele compreende que
esse mesmo favor é uma prova, e que sua justiça se estende sobre o rico como sobre
o pobre. Eis o que o torna submisso à vontade de Deus, bom e indulgente para
seus semelhantes, feliz em seu modesto trabalho. Credes que o Espiritismo não
lhe prestou maiores serviços do que aqueles que se esforçam para lhe provar que
não há nada após esta vida, princípio que tem por consequência que se deve
buscar aqui sua felicidade a qualquer preço? Eis, Senhor, o que é o
Espiritismo. Aqueles que o combatem é porque não o conhecem. Quando ele for
compreendido, nele se verá uma das mais sólidas garantias de felicidade e de
segurança para a sociedade, pois não serão os seus adeptos sinceros que
a perturbarão.’
Eu
confesso que jamais havia encarado o Espiritismo sob esse ponto de vista. Agora
eu lhe compreendo o alcance, e lamento aqueles que ainda veem nele apenas um
fenômeno curioso de mesas girantes. Eu me perguntava se a doutrina dos diabos e
dos demônios, do Sr. de Mirville,[2] poderia dar semelhantes consolações; se ela
seria de natureza a conduzir os homens ao bem e à fé religiosa, e se não teria
contribuído, ao contrário, mais para os desviar, inspirando-lhes mais medo do
que amor, mais curiosidade do que sentimentos bons e humanos.”
[1] O autor faz referência ao Livro dos Espíritos
em uma nota, aqui
traduzida pela equipe do IPEAK, inserida
em sua Carta de um católico sobre o Espiritismo. Kardec
recomenda essa brochura na Revista Espírita de novembro de 1860, em
Bibliografia.
A brochura
do Dr. Grand também consta na relação de obras queimadas no Auto de fé de
Barcelona (ver Revista Espírita de novembro de 1861), e está disponível, em
francês, no site:
www.ipeak.com.br, no link:
[2] O Dr. Grand se refere ao livro do
Sr. de Mirville, intitulado: Questões dos Espíritos, publicado em 1855, e
que Kardec recomenda em seu Catálogo Racional, na seção: Obras diversas
sobre o Espiritismo. (N.T)