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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Culpa, arrependimento e reparação sob a ótica espírita - I


Especial Inglês Espanhol
Ano 6 - N° 279 - 23 de Setembro de 2012

CLAUDIA GELERNTER
claudiagelernter@uol.com.br
Vinhedo, SP (Brasil)
 

Claudia Gelernter

Culpa, arrependimento e reparação sob a ótica espírita

Parte 1 

1002. O que deve fazer aquele que, no último momento, na hora da morte, reconhece as suas faltas, mas não tem tempo para repará-las? É suficiente arrepender-se, nesse caso?
“O arrependimento apressa a sua reabilitação, mas não o absolve. Não tem ele o futuro pela frente, que jamais se lhe fecha?” (O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec.)
Jean-Jacques Rousseau, um dos grandes nomes do iluminismo, nasceu em Genebra, no ano de 1712. Não conheceu sua mãe, porque ela, devido a complicações do parto, veio a falecer dias após seu nascimento. Quando completou dez anos de idade, seu pai envolveu-se em uma discussão com pessoa importante da cidade e, com receio de represálias, fugiu, deixando o filho para ser educado por um tio. Segundo seus biógrafos, o fato de Rousseau não ter conhecido a mãe marcou-o profundamente.
Tornou-se, na vida adulta, compositor autodidata, teórico político, filósofo e escritor. Contribuiu amplamente para as grandes reformas ocorridas na América e na Europa, no século XIX, com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, sendo ainda um dos colaboradores da famosa Enciclopedie, de Diderot e D´Alembert. Escreveu vários livros, influenciando diversas culturas e gerações. Foi um daqueles homens que não passam despercebidos, pois possuía conhecimentos bastante avançados para sua época – visões que romperam com os paradigmas vigentes, trazendo transformações importantíssimas para o panorama do mundo ocidental.
Um de seus escritos, de estrondoso sucesso, chama-se “Emílio, ou Da Educação”. Nesta obra, Rousseau cria um personagem fictício, de nome Emílio, e vai, no transcorrer de seus escritos, contando ao leitor qual a forma como ele educa este personagem. O objetivo de Emílio é “formar um homem livre; e o verdadeiro amor pelas crianças…”.  Hoje esta obra é vista não apenas como uma referência obrigatória para todos os educadores [pais, professores etc.], mas, acima de tudo, como uma lição de vida. Entretanto, Rousseau, esse mesmo homem, filósofo, escritor, teve cinco filhos. E os abandonou, a todos, em orfanatos.
No prefácio da obra mencionada, o tradutor assim comenta: “Como levar a sério um livro sobre a educação escrito por um homem que abandonou os cinco filhos que teve com Thérese Levasseur? Esta questão prévia, repetida pelos jovens leitores de ontem e de hoje, deve ser colocada, não para ser ela própria levada a sério, mas para que nos desvencilhemos dela de uma vez por todas. Rousseau é daqueles que acham que não há covardia pior do que o abandono dos filhos que se teve o prazer de fazer. Escreveu Rousseau em sua obra Emílio: ‘Um pai, quando gera e sustenta filhos, só realiza com isso um terço de sua tarefa. Ele deve homens à sua espécie, deve à sociedade homens sociáveis, deve cidadãos ao Estado. Todo homem que pode pagar essa dívida tríplice e não paga é culpado, e talvez ainda mais culpado quando só paga pela metade. Quem não pode cumprir os deveres de pai não tem direito de tornar-se pai. Não há pobreza, trabalho nem respeito humanos que os dispensem de sustentar seus filhos e de educá-los ele próprio. Leitores, podeis acreditar no que digo. Para quem quer que tenha entranhas e desdenhe tão santos deveres, prevejo que por muito tempo derramará por sua culpa lágrimas amargas e jamais se consolará disso’.” (Emílio, Livro 1.)
Rousseau influenciou sobremaneira pensadores
como Pestalozzi
 
Foi justamente por sentir-se culpado que Rousseau escreveu Emílio (de 1757 a 1762). Não podemos pretender que o livro não tenha nada para nos ensinar porque seu autor não o colocou em prática. Para isso, seria necessário inverter a cronologia e proibir a Rousseau toda a oportunidade de um arrependimento sincero que busca a reparação. Afirmou o autor de Emílio: “Não escrevo para desculpar meus erros, mas para impedir meus leitores de os imitar”.
Jean-Jacques influenciou sobremaneira alguns pensadores, tais como Johann Pestalozzi, fundador da escola de Yverdun, na Suíça, mestre de Allan Kardec. Portanto, podemos dizer que Rousseau é o avô espiritual de Kardec nas questões da educação. Levando-se em conta que o codificador da Doutrina Espírita [assim como Pestalozzi] era pedagogo, logo percebemos quanto a obra Emílio foi importante para todos os três e tantos outros. E se Rousseau influenciou sobremaneira Kardec, nós outros, daqui deste lado do planeta, 150 anos após Kardec, somos também influenciados por suas ideias fantásticas de educação através do amor e da liberdade.
Sabemos, ainda, através dos escritos do final da vida de Jean-Jacques Rousseau, que ele tentou resgatar todos os seus filhos dos orfanatos, mas não teve sucesso. Portanto, de seu arrependimento e expiação vemos surgir a busca pela reparação, se não diretamente aos prejudicados, através de todos aqueles que beberem nas fontes de suas ideias renovadoras e, por que não dizer, maravilhosas.
O escritor Catulo da Paixão Cearense, em seu poema “A Dor e a Alegria”, afirma que “a dor é como um relâmpago; no escuro assusta a gente, mas alumia os caminhos”. Rousseau aprendeu o verdadeiro sentido dessa frase 300 anos antes de ser pronunciada por Catulo.
Seguindo tal linha de pensamento, podemos afirmar que Rousseau não ficou estagnado no susto causado pela dor. Abriu os olhos, no momento em que ela clareava caminhos, e soube segui-los com coragem. Ainda bem.
Outra história, mais antiga que a de Rousseau, mas que inspira nossos corações sobremaneira, fala sobre uma mulher nascida em uma época difícil, na cidade de Magdala. Chamava-se Maria. Contam-nos alguns evangelistas que ela carregava em seu psiquismo a presença de sete demônios, tendo sido curada por Jesus. Hoje, através da Doutrina Espírita, aprendemos que tais ‘demônios’ eram, na verdade, Espíritos ainda ignorantes, voltados temporariamente ao mal.
Afastaram-se de Maria sob a imposição moral do Mestre, entretanto cabe-nos salientar que, se não voltaram a importuná-la, foi devido aos méritos que ela acumulou, através de sua reforma interior. 
Rousseau mostrou-se em muitos momentos um
protestante rebelado 
Humberto de Campos, no livro Boa Nova, conta-nos, de forma emocionante, a história do encontro entre Maria e Jesus. Ela, curvada pelo peso de sua culpa, carregando no íntimo muitas dores nascidas do remorso constante, abre seu coração atormentado. Jesus, o Grande Sábio, aponta novos caminhos: “Ame, Maria. Ame muito. Ame os filhos de outras mães... escolha a porta estreita...”.
Nada de acusações. Apenas um pedido: que amasse muito, sem nada esperar de volta. Foi o que fez.
Após a crucificação de Jesus, decidiu seguir os discípulos na divulgação da Boa Nova. Entretanto, aqueles homens, encharcados de preconceitos, negaram-lhe a companhia. Teve de ficar às margens do Tiberíades, em lágrimas, cheia de saudades e dor.
Foi quando viu chegarem à cidade diversos leprosos, em busca do Mestre. Não sabiam que Ele já não pertencia àquele mundo – queriam ouvir Sua voz, Seus ensinamentos e, quem sabe, conseguir a tão almejada cura.
Maria não hesitou. Buscou-os e, em todas as tardes, passou a divulgar os ensinamentos que houvera aprendido com o amigo nazareno. Em pouco tempo, porém, aquelas pessoas foram expulsas de Cafarnaum e ela, com o melhor sentimento de que dispunha, acompanhou-os para longe dali. Seguiu seus dias cuidando, diuturnamente, dos doentes, amparando-os, tentando minimizar suas dores, sua fome, sua tristeza. Depois de algum tempo percebeu manchas róseas em sua pele. Estava com hanseníase, também.
Sentindo que o final se abeirava, decidiu procurar pela mãe de Jesus, Maria, e por João, seus amigos diletos. Seguiu para Éfeso, mas não conseguiu adentrar a cidade, caindo pouco antes de sua entrada.
Logo após sua desencarnação, viu-se novamente às margens do mar da Galileia, encostada em uma grande árvore. Ao longe, aproxima-se Jesus, com os braços abertos, a dizer-lhe: “Maria, já passaste a porta estreita!... Amaste muito! Vem! Eu te espero aqui!”.
Duas histórias fantásticas, com pontos em comum: Rousseau e Maria saíram do processo de remorso, arrependeram-se verdadeiramente e optaram pela reparação. Outro ponto que devemos destacar é que ambos, embora dentro de culturas essencialmente religiosas [ela era judia e ele protestante] e preconceituosas, conseguiram libertar-se das amarras teológicas. Ela, porque bebeu nas fontes da Verdade, diretamente com Jesus. Recordemos que Ele afirmou: “Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”. (João, 8:32.) Foi o que ocorreu com Maria. Libertou-se do remorso e pôde seguir em frente.
Ele [Rousseau], porque rompeu com as amarras dos dogmas. Mostrou-se em muitos momentos um protestante rebelado, desconfiado das interpretações eclesiásticas sobre os Evangelhos. Dizia sempre: "Quantos homens entre mim e Deus!", o que atraía a ira tanto de católicos como de protestantes.  
A culpa no Ocidente – O capitalismo e a normose 
Na atualidade, enfrentamos muitos dilemas quando analisamos a questão da culpa.
Cada vez mais tomamos consciência de como as teorias individualistas ocidentais estão equivocadas (1) no que se refere à realidade do ser. Tanto através da lente espírita, como das ciências ditas humanas, temos tido contato com outra realidade: a de que pertencemos ao todo, influenciando e sendo influenciados, num mar de experiências, onde tudo se modifica, continuamente, através das relações. Não é possível explicar o ser em separado do meio onde ele atua. Não podemos deixar de considerar o tempo histórico e a cultura onde está inserido, sob risco de cometermos erros crassos, subtraindo influências importantes e, pior, não reconhecendo sua real essência neste meio.
Com isso, já percebemos a urgência de um olhar mais holístico, vislumbrando o sujeito com todas as suas faces. O ser como sendo um sujeito bio-psico-socio-espiritual, pois é o que somos, sendo que o Espírito, o ser imortal, criado simples e ignorante, com potencialidades de perfeição relativa e que vai, através de vidas sucessivas, evoluindo, é sua essência, o seu verdadeiro eu, com o qual atua no mundo, através de sua porção biológica, com mecanismos psicológicos característicos, dentro de uma sociedade, em determinada cultura e em determinado tempo histórico.
Quando ampliamos este nosso olhar, vamo-nos aproximando da realidade, e, com isso, podemos melhorar nosso entendimento, conseguindo, por consequência, refletir melhor sobre nossas ações e as implicações destas em nossas vidas e no meio onde atuamos.
Na cultura judaico-cristã, o medo dos fiéis alimentou, por séculos, o poder de alguns, através do mecanismo da culpa. Nesse contexto, já nascíamos culpados; afinal somos descendentes de um erro imperdoável: nossos ancestrais Adão e Eva que, num ato de muita insensatez (pela visão religiosa tradicional) abdicaram do maior presente de Deus – o paraíso na Terra – trocando-o pelo fruto da árvore da sabedoria. Somos culpados por desejarmos algo saber. Sendo assim, a ignorância seria o melhor remédio, aceitando dogmas irrevogáveis e, lógico, inquestionáveis. Talvez aí pudéssemos fazer as pazes com Deus, por determinado tempo, desde que ainda contribuíssemos com algo, de preferência de natureza material, pela ‘Causa de Deus na Terra’.
Mas a nossa história com a culpa não para por aí. Mulheres judias nascem impuras; afinal, menstruam e nem sequer podem orar como os homens nos templos. Depois do ano 234 d.C., quando se criou a instituição católica, a culpa continuaria presente. Homens deveriam lutar nas ‘guerras santas’, trazendo ouro para a igreja e diminuindo o número de ‘infiéis’, através da espada. Se assim fizessem, poderiam dormir com a consciência tranquila, pois estariam quites com Deus.  (Este artigo será concluído na próxima edição.)

(1)
 Segundo a ideia vigente na ideologia do capitalismo, o homem é um ser que ‘se faz sozinho’, podendo ascender ou fracassar, de acordo com sua vontade [ou falta dela]. Nesta forma de pensamento não são consideradas as influências do meio para estudo e entendimento do indivíduo; os fenômenos humanos poderiam ser estudados em separado do contexto onde este se desenvolveu. Na cultura norte-americana, o ‘self-made man’ (homem que se faz sozinho) é o símbolo maior desse tipo de pensamento, auxiliando, desta forma, a manutenção da ideologia em que estamos mergulhados.

Referências bibliográficas:
 
LELOUP: J. Y; WEILL, P.; CREMA, R. Normose: a patologia da normalidade. São Paulo, Thot, 1997.  
KARDEC, A. O Céu e o Inferno, Código da Vida Futura, p.94, Tradução de Manuel Justiniano Quintão, 42ª edição; FEB; Rio de Janeiro, 1998. 
O Livro dos Espíritos, 1ª edição comemorativa do sesquicentenário, Tradução de Evandro Noleto Bezerra, FEB, Rio de Janeiro, 2006. 
ROUSSEAU, J.J.; Emílio ou Da Educação; tradução Roberto Leal Ferreira, 3ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2004. 
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo, Martin Claret. 4ª edição, 2001. 
XAVIER, F.C.; Boa Nova, capítulo Maria de Magdala, pelo Espírito Humberto de Campos; FEB; 3ª edição, Rio de Janeiro, 2008

Mensagem retirada da Revista Eletrônica "O Consolador", no endereço:
http://www.oconsolador.com.br/ano6/279/especial.html