Os tempos são chegados (parte 4)
A fraternidade deve ser a pedra angular da nova ordem social.
Mas não haverá fraternidade real, sólida e efetiva se não for apoiada em base
inabalável; esta base inabalável; esta base é a fé; não a fé em tais ou quais
dogmas particulares, que mudam com os tempos e os povos e se atiram pedras,
porque, anatematizando-se, entretêm o antagonismo; mas a fé nos princípios
fundamentais que todo o mundo pode aceitar: Deus, a alma, o futuro, o progresso individual indefinido, a
perpetuidade das relações entre os seres. Quando todos os
homens estiverem convictos de que Deus é o mesmo para todos, que esse Deus,
soberanamente justo e bom, nada pode querer de injusto, que o mal vem dos
homens e não Dele, olhar-se-ão como filhos de um mesmo pai e se darão as mãos.
É esta fé que dá o Espiritismo e que, de agora em diante, será o pivô sobre o
qual se moverá o gênero humano, sejam, quais forem sua maneira de adotar e suas
crenças particulares, que o Espiritismo respeita, mas das quais não deve se
ocupar. Somente desta fé pode sair o verdadeiro progresso moral, porque só ela
dá uma sanção lógica aos direitos legítimos e aos deveres; sem ela, o direto é
o que é dado pela força; o dever, um código humano imposto pela violência. Sem
ela que é o homem? um pouco de matéria que se dissolve, um ser efêmero que
apenas passa; o próprio gênio não é senão uma centelha que brilha um instante,
para extinguir-se para sempre; por certo não há nisto muito para o erguer aos
seus próprios olhos. Com tal pensamento, onde estão, realmente, os direitos e
os deveres? Qual o objetivo do progresso? Somente esta fé faz o homem sentir
sua dignidade pela perpetuidade e pela progressão de seu ser, não num futuro
mesquinho e circunscrito à personalidade, mas grandioso e esplêndido; seu
pensamento o eleva acima da Terra; sente-se crescer, pensando que tem seu papel
no Universo, e que esse Universo é o seu domínio, que um dia poderá percorrer,
e que a morte não fará dele uma nulidade, ou um ser inútil a si mesmo e aos
outros.
O progresso intelectual realizado até hoje nas mais vastas
proporções é um grande passo, e marca a primeira fase da Humanidade, mas,
apenas ele, é importante para regenerar. Enquanto o homem for dominado pelo
orgulho e pelo egoísmo, utilizará sua inteligência e seus conhecimentos em benefício
de suas paixões e de seus interesses pessoais, razão por que os aplica no
aperfeiçoamento dos meios de prejudicar os outros e de se destruírem
mutuamente. Só o progresso moral pode assegurar a felicidade dos homens na
Terra, pondo um freio nas más paixões; somente ele pode fazer reinarem a
concórdia, a paz, a fraternidade. É ele que derrubará a barreira dos povos, que
fará caírem os preconceitos de casta e calar os antagonismos de seitas,
ensinando os homens a se olharem como irmãos, chamados a se ajudarem
mutuamente, e não a viverem uns à custa dos outros. É ainda o progresso moral,
aqui secundado pelo progresso da Inteligência, que confundirá os homens numa
mesma crença, estabelecida sobre verdades eternas, não sujeita à discussão e,
por isto mesmo, por todos aceitas. A unidade de crença será o laço mais
poderoso, o mais sólido fundamento da fraternidade universal, em todos os
tempos quebrada pelos antagonismos religiosos, que dividem os povos e as
famílias, que fazem ver no próximo inimigos que é preciso fugir, combater,
exterminar, em vez de irmãos que devem ser amados.
Tal estado de coisas supõe uma mudança radical no sentimento
das massas, um progresso geral que não poderia realizar-se senão saindo do
círculo das ideias estreitas e terra-a-terra, que fomentam o egoísmo. Em
diversas épocas, homens de escol procuraram impelir a Humanidade nessa via;
mas, ainda muito jovem, a Humanidade ficou surda, e seus ensinamentos foram
como a boa semente caída sobre a pedra. Hoje ela está madura para lançar suas
vistas mais alto do que o fez, a fim de assimilar ideias mais largas e
compreender o que não havia compreendido. A geração que desaparece levará
consigo os seus preconceitos e os seus erros; a geração que surge, temperada
numa fonte mais depurada, imbuída de ideias mais justas, imprimirá ao mundo o
movimento ascensional, no sentido do progresso moral, que deve marcar a nova
fase da Humanidade. Esta fase já se revela por sinais inequívocos, por
tentativas de reformas úteis, pelas ideias grandes e generosas que vêm à tona e
que começam a encontrar eco. É assim que se vê fundar-se uma porção de
instituições protetoras, civilizadoras e emancipadoras, sob o impulso e pela
iniciativa de homens evidentemente predestinados à obra da regeneração; que as
leis penais diariamente se impregnam de um sentimento mais humano. Os
preconceitos de raça se enfraquecem, os povos começam a olhar-se como membros
de uma grande família; pela uniformidade e facilidade dos meios de transação,
suprimem as barreiras que os dividem de todas as partes do mundo, reúnem-se em
comícios universais para os torneios pacíficos da inteligência. Mas faltam a
essas reformas uma base para se desenvolverem, para se completarem e se
consolidarem, uma predisposição moral mais geral para frutificarem e se fazerem
aceitas pelas massas. Isto não é menos um sinal característico do tempo, o
prelúdio do que se realizará em mais vasta escala, à medida que o terreno se
tornar mais propício.
Um sinal não menos característico do período em que entramos,
é a reação evidente que se opera o sentido das ideias espiritualistas, uma
repulsa instintiva contra as ideias materialistas. Cujos representantes se
tornam menos numerosos ou menos absolutos. O espírito de incredulidade que se
havia apoderado das massas, ignorantes ou esclarecidas, e as tinha feito
repelir, com a forma, o próprio fundo de toda crença, parece ter sido um sono,
ao sair do qual se experimenta a necessidade de respirar um ar mais
vivificante. Involuntariamente, onde se fez o vazio procurar-se algo, um ponto
de apoio, uma esperança.
Allan Kardec - Revista Espírita - outubro de 1866
Allan Kardec - Revista Espírita - outubro de 1866
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