Voltado para a educação, escreveu inúmeras obras didáticas no período de 1824 a 1849, tais como: "Curso prático e teórico de Aritmética", segundo o método de Pestalozzi, para uso das mães e dos professores (ele contava então 20 anos de idade); "Plano apresentado para o melhoramento da instrução pública" (aos 24 anos); "Gramática Francesa Clássica" (aos 27 anos); "Manual dos exames para obtenção dos diplomas de capacidade, soluções racionais das questões e problemas de Aritmética e Geometria" (aos 42 anos); "Catecismo gramatical da língua francesa" (aos 44 anos); "Ditados normais dos exames na municipalidade e na Sorbonne" e "Ditados especiais sobre as dificuldades ortográficas" (aos 45 anos). Nessa época (1849), Kardec lecionava no Liceu Polimático de Paris, regendo as cadeiras de fisiologia, astronomia, física e química.
Uma carta consoladora
O primeiro contato do professor com os fenômenos espíritas se deu em maio de 1855. Ele já era, então, aos 50 anos de idade, um indivíduo maduro e experimentado, além de talhado para a tarefa de codificação da Doutrina, cujo fato inicial marcante foi a publicação em 18 de abril de 1857 da conhecida obra que ele intitulou O Livro dos Espíritos. A ela seguiram-se outras obras, as palestras, as reuniões, a fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e as edições mensais da Revista Espírita.
O resultado do seu trabalho como codificador do Espiritismo é algo difícil de avaliar. Eis, no entanto, uma pequena amostra dele no relato que se segue.
Numa manhã muito fria de abril de 1860, Kardec estava triste e só, em seu escritório. Idéias de desânimo perpassavam sua mente. Escasseavam os recursos financeiros. Críticas ferinas, até de companheiros da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, ele vinha recebendo de todos os lados. Bem que os espíritos o haviam alertado!
De repente, Amélie penetra o recinto e lhe entrega um pacote que alguém havia remetido. Kardec o abre e vê que dentro dele havia uma carta e um outro pacote fechado. O codificador abre a carta e lê:
"Sr. Allan Kardec.
Respeitoso abraço.
Com a minha gratidão, remeto-lhe o livro anexo, bem como a sua história, rogando-lhe, antes de tudo, prosseguir em suas tarefas de esclarecimento da humanidade, pois tenho fortes razões para isso.
Sou encadernador desde a meninice, trabalhando em grande casa desta capital.
Há cerca de 2 anos, casei-me com aquela que se revelou minha companheira ideal. Nossa vida corria normalmente e tudo era alegria e esperança, quando, no início deste ano, de modo inesperado, minha Antoniete partiu desta vida, levada por sorrateira moléstia. Meu desespero foi indescritível e julguei-me condenado ao desamparo extremo. Sem confiança em Deus, sentindo as necessidades do homem do mundo e vivendo com as dúvidas aflitivas de nosso século, resolvera seguir o caminho de tantos outros, ante a fatalidade...
A prova da separação vencera-me, e eu não passava, agora, de trapo humano. Faltava ao trabalho e meu chefe, reto e ríspido, ameaçava-me com a dispensa. Minhas forças fugiam..."
O missivista relatou então que passou a acalentar a idéia do suicídio, jogando-se no Sena, projeto que pôs em execução em determinada madrugada, quando o desespero lhe tomou por completo a alma. Buscou a ponte Marie e, no momento em que colocou a mão sobre o parapeito da ponte, um objeto caiu-lhe aos pés: era um livro. Ele procurou a luz de um poste próximo, achou estranho o título do livro e viu que na sua primeira página havia uma nota: ESTA OBRA SALVOU-ME A VIDA. LEIA-A COM ATENÇÃO E TENHA BOM PROVEITO. - A. Laurent.
"Li aquele livro com redobrada atenção: era O Livro dos Espíritos, que encadernei e lhe envio, anexo, como um presente."
Kardec desembrulhou o pacote anexo à carta e viu ali o livro a que se referia o missivista, luxuosamente encadernado, com o nome do autor e o título gravados a ouro. O codificador, ao abri-lo, encontra a citação de A. Laurent, mencionada na carta, e debaixo dela, uma outra inscrição: SALVOU-ME TAMBÉM. DEUS ABENÇOE AS ALMAS QUE COOPERARAM EM SUA PUBLICAÇÃO. - Joseph Perrier.
Kardec respirou a longos haustos e, antes de retomar o serviço, levou o lenço aos olhos e limpou uma lágrima." (Hilário Silva, cap. 52 d' "O Espírito da Verdade", FEB.)
O reconhecimento de sua obra: Emmanuel fala
sobre Kardec
Após 150 anos desde o lançamento d’ O Livro dos Espíritos, Kardec é hoje conhecido e respeitado mundialmente pelos espiritistas. A reverência à sua obra, vencedora no tempo, está expressa nas seguintes palavras de Emmanuel, a mesma entidade que recomendara a Chico Xavier comparar os seus escritos com o Evangelho de Jesus e Kardec, antes de torná-los públicos:
"Antes de Kardec, embora não nos faltasse a crença em Jesus, vivíamos na Terra atribulados por flagelos da mente, quais o que expomos:
o combate recíproco e incessante entre os discípulos do Evangelho;
o cárcere das interpretações literais;
o espírito de seita;
a intransigência delituosa;
a obsessão sem remédio;
o anátema nas áreas da filosofia e da ciência;
o cativeiro aos rituais;
a dependência quase absoluta dos templos de pedra para a tarefa da edificação íntima;
a preocupação da hegemonia religiosa;
a tirania do medo, ante as sombrias perspectivas do além-túmulo;
o pavor da morte, por suposto fim da vida.
Depois de Kardec, porém, com a fé raciocinada nos ensinamentos de Jesus, o mundo encontra no Espiritismo Evangélico benefícios incalculáveis, como sejam:
a libertação das consciências;
a luz para o caminho espiritual;
a dignificação do serviço ao próximo;
o discernimento;
o livre acesso ao estudo da lei de causa e efeito, com a reencarnação explicando as origens do sofrimento e as desigualdades sociais;
o esclarecimento da mediunidade e a cura dos processos obsessivos;
a certeza da vida após a morte;
o intercâmbio com os entes queridos domiciliados no Além;
a seara da esperança;
o clima da verdadeira compreensão humana;
o lar da fraternidade entre todas as criaturas;
a escola do Conhecimento Superior, desvendando as trilhas da evolução e a multiplicidade das "moradas" nos domínios do Universo.
Jesus - o amor. Kardec - o raciocínio.
Jesus - o Mestre. Kardec - o apóstolo.
Seguir o Cristo de Deus, com a luz que Kardec acende em nossos corações, é a norma renovadora que nos fará alcançar a sublimação do próprio espírito, em louvor da Vida Maior.” (Mensagem psicografada por Chico Xavier em 24/1/1969.)
O retorno à pátria espiritual
"Ele morreu esta manhã, entre 11 e 12 horas, subitamente, ao entregar um número da "Revista Espírita" a um caixeiro de livraria que acabava de comprá-lo; ele se curvou sobre si mesmo, sem proferir uma única palavra: estava morto.
Sozinho em sua casa (rua de Sant'Anna), Kardec punha em ordem seus livros e papéis para a mudança que se vinha processando e que deveria terminar amanhã. Seu empregado, aos gritos da criada e do caixeiro, acorreu ao local, ergueu-o.. nada, nada mais. Delanne acudiu com toda presteza, friccionou-o, magnetizou-o, mas em vão. Tudo estava acabado.
Venho de vê-lo. Penetrando a casa, com móveis e utensílios diversos atravancando a entrada, pude ver, pela porta aberta da grande sala de sessões, a desordem que acompanha os preparativos para uma mudança de domicílio; introduzido numa pequena sala de visitas, que conheceis bem, com seu tapete encarnado, e seus móveis antigos, encontrei a sra. Kardec assentada no canapé (espécie de sofá com costas e braços), de face para a lareira; ao seu lado, o sr. Delanne; diante deles, sobre dois colchões colocados no chão, junto à porta da pequena sala de jantar, jazia o corpo, restos inanimados daquele que todos amamos. Sua cabeça, envolta em parte por um lenço branco atado sob o queixo, deixava ver toda a face, que parecia repousar docemente e experimentar a suave e serena satisfação do dever cumprido.
Nada de tétrico marcara a passagem de sua morte; se não fosse a parada de respiração, dir-se-ia que ele estava dormindo.
Cobria-lhe o corpo uma coberta de lã branca, que, junto aos ombros dele, deixava perceber a gola do "robe de chambre", a roupa que ele vestia quando fora fulminado; a seus pés, como que abandonadas, suas chinelas e meias pareciam possuir ainda o calor do corpo dele.
Tudo isto era triste e, entretanto, um sentimento de doce quietude penetrava-nos a alma; tudo na casa era desordem, caos, morte, mas tudo aí parecia calmo, risonho e doce e, diante daqueles restos, forçosamente meditamos no futuro." (Trecho da carta escrita por E. Muller ao sr. Finet, em 31/3/1869, logo após o falecimento de Kardec.)
Conta-se que logo após a sua desencarnação, quando o corpo ainda não havia baixado ao Cemitério de Montmartre (a trasladação dos despojos para o dólmen do Pére-Lachaise ocorreu um ano depois), uma multidão de Espíritos veio saudar o mestre no limiar do sepulcro. Eram antigos homens do povo, seres infelizes que ele havia consolado e redimido com as suas ações prestigiosas e, quando se entregavam às mais santas expansões afetivas, uma lâmpada maravilhosa caiu do céu sobre a grande assembléia dos humildes, iluminando-a com uma luz que, por sua vez, era formada de expressões do seu "Evangelho segundo o Espiritismo", ao mesmo tempo que uma voz poderosa e suave dizia do Infinito:
"Kardec, regozija-te com a tua obra! A luz que acendeste com os teus sacrifícios na estrada escura das descrenças humanas vem felicitar-te nos pórticos misteriosos da Imortalidade... O mel suave da esperança e da fé que derramaste nos corações sofredores da Terra, reconduzindo-os para a confiança na minha misericórdia, hoje se entorna em tua própria alma, fortificando-te para a claridade maravilhosa do futuro.
"No Céu estão guardados todos os prantos que choraste e todos os sacrifícios que empreendeste... Alegra-te no Senhor, pois teus labores não ficaram perdidos. Tua palavra será uma bênção para os infelizes e desafortunados do mundo, e ao influxo de tuas obras a Terra conhecerá o Evangelho no seu novo dia!..." (Trecho do cap. 21 do livro "Crônicas de Além-Túmulo", por Humberto de Campos, por meio de Chico Xavier.)
Matéria extraída da Revista Eletrônica "O Consolador", que poderá ser acessada no endereço: